À primeira vista, o título acima conduz o despercebido leitor a cogitar um erro gravíssimo de redundância por parte do autor. “Como posso escutar aquilo que não ouço?”, podem questionar. Outros chegarão à filosófica conclusão de que “ouço, logo escuto”. Por fim, alguns dirão que ambos os termos são e sempre serão sinônimos, desviando a conversa para o resultado futebolístico do final de semana e encerrando, de forma drástica, a possível discussão. Embora sejam vistas por muitos como semelhantes, há significantes diferenças entre as duas palavras. Segundo o Dicionário Michaelis, ouvir remete a “dar ouvido às palavras de; perceber pelo sentido do ouvido”, ao passo que escutar refere-se a “prestar atenção para ouvir; dar atenção à; sentir; perceber”. Em suma: enquanto ouvir está ligado às funções auditivas, escutar envolve-se primordialmente com a atenção (e conseqüente compreensão) àquele que nos dirige a palavra.
Um breve caso auxiliará na elucidação dos conceitos. Certa vez, uma mulher retornou aflita de seu trabalho, necessitando dialogar urgentemente com o marido. Ao adentrar em casa, notou o esposo sentado no sofá, lendo seu respectivo jornal. Não demorou muito para iniciar seu desabafo, de forma atropelada e desorganizada. Qual foi a sua surpresa ao ser interpelada pelo marido da forma mais superficial possível, com fáticos “aham”, “que mais” e “certo”, mas sem desgrudar os olhos das páginas esportivas um minuto sequer. Tornando-se ainda mais desesperada, não se agüentou e arrancou o jornal das mãos do homem que, assustado, perguntou: “O que está acontecendo?”. “Acontece que eu estou há quase meia hora lhe falando das idéias malucas de nossa filha, que deseja viajar com o namorado para uma praia deserta, e você continua com essa expressão de que nada está acontecendo. Será que você está me escutando?”. Certamente a resposta para esse caso é “não”, pois ele realmente não escutou o que estava sendo dito. É possível que seu canal auditivo tenha captado as ondas sonoras provindas da voz da esposa, transmitindo o estímulo para o próprio organismo. Todavia, dificilmente tal estímulo transformou-se em alguma mensagem efetiva, afinal, nenhuma atenção foi desprendida pelo sujeito para torná-la consciente.
Pode parecer um exemplo distante, contudo, está mais presente no cotidiano das pessoas do que se imagina. Basta refrescar da memória a última vez que se encontrou com aquele amigo indesejado e pouco quisto, vulgo chato: é bem provável que, em meio a tanto desinteresse em manter a conversa, o interlocutor tenha se utilizado apenas dos ouvidos (quizá respostas monossilábicas), sem envolver a escuta propriamente dita ou até mesmo, o mínimo de atenção. Outro exemplo dá-se costumeiramente nas salas de aula, em disciplinas que não interessem tanto a determinados alunos. Embora estejam olhando e ouvindo a figura do professor, seus pensamentos encontram-se há milhas de distância.
O movimento de escutar não é tão simples quanto se demonstra ser. Na atual sociedade, valoriza-se a máxima produção em detrimento ao menor tempo possível. Desta forma, pouco tempo é destinado ao exercício de escuta, uma vez que, na lógica pós-moderna, significa “perda de tempo”. Em vez de desprender de alguns minutos para dedicá-lo ao entendimento do próximo, prefere-se criar relações objetivas, mas superficiais, nas quais o contato está baseado mais no que cada um tem a dizer, ou seja, um “monologo dirigido”, ao invés de uma formação de diálogo.
Entretanto, existe alguém que pode servir de grande inspiração. Embora tenha partido há muito tempo, permanece vivo como exemplo a ser seguido: trata-se da pessoa de Jesus Cristo. Ele soube, de maneira única, estar inteiramente presente em todas as suas relações. Dificilmente será encontrada na bíblia alguma passagem que mostre Cristo conversando levianamente com o povo. Muito pelo contrário: Ele sempre está com uma posição corporal que permita olhar atentamente para o fiel, desprendendo toda a atenção que essa pessoa mereça. Jesus soube perfeitamente como escutar, cativar e compreender o próximo. Foi assim em todos os diálogos com seus apóstolos, com os dez leprosos, com Zaqueu e até mesmo com a adúltera. Independentemente daquele que se encontrava a sua frente, tratou todos de forma respeitosa e atenciosa.
Diante do que foi apresentado e tendo como exemplo vivo a figura do Filho de Deus, percebe-se a grande importância que o processo da escuta assume na vida dos seres humanos. É preciso ir muito além do simples ato de ouvir. Faz-se necessário, antes de tudo, esforçar-se para estar atento à transmissão do mundo interno daquele que fala, captando assim o valor essencial de sua mensagem. Espera-se que as pessoas estabeleçam vínculos de confiança, sabendo-se que só serão criados caso existam ligações verdadeiras de ambas as partes. A esse clima de fraternidade os psicólogos denominam de relação dialógica, isto é, um relacionamento verdadeiro formado por duas pessoas (eu-tu), na qual se encontram presentes em sua totalidade, dotadas de comunicação genuína e sem reservas. Por fim (e parafraseando o brilhante Rubem Alves), é preciso dizer: “existem muitos cursos de oratória, mas nunca alguém se preocupou em criar um curso de escutatória”. Está disposto a ser pioneiro nessa arte? “Sintaxe” à vontade!
Diogo Luiz Galline
Diogo Luiz Galline
Parece-me muito interessante e extremamente necessário o convite que nos é feito, através desse texto, para treinarmos mais a escuta ativa nas relações interpessoais. Esse tipo de escuta pressupõe, além de distinguirmos a diferença semântica e prática entre ouvir e escutar, o exercício constante de algo mais que “prestar atenção”. Escuta ativa exige a habilidade de incentivar, esclarecer (perguntar na forma e no tempo oportuno), reafirmar (parafrasear), refletir (espelhar os sentimentos), resumir e validar a fala do outro.
ResponderExcluirMais ainda, visto que a comunicação e o diálogo profundos são estradas de mão – dupla, além da escuta ativa precisamos treinar a capacidade de expressar-nos de forma adequada, privilegiando, na apresentação de nossos desejos, necessidades e pedidos as chamadas “mensagens – eu”. Quer dizer, aprendermos a expressar os nossos verdadeiros sentimentos e emoções que nos ocorrem diante de um fato objetivamente identificado, sem julgar, sem cobrar e sem colocar a responsabilidade dos mesmos no “tu” (nos outros).
Obrigado pelo texto!
Olá Diogo,este artigo vai para além da escuta, ela se refere ao ato verdadeiro de auscutar. Esta é a verdadeira prática necessária a todos nós.
ResponderExcluirElizete
Muito interessante essa distinção entre ouvir e escutar. Muitas vezes o simples ato de "escutar" (prestar atenção, dar importância ao que se ouve) pode se transformar em soluções para muitos problemas.
ResponderExcluirPorém, como colocou muito bem nosso colega Gustavo, "a escuta ativa exige a habilidade de incentivar, esclarecer (perguntar na forma e no tempo oportuno), reafirmar (parafrasear), refletir (espelhar os sentimentos), resumir e validar a fala do outro". Adorei o post e os comentários.
Larissa Ribeiro Batiste.